Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
REDES CULTURAIS

Nos inícios do século XIX, o pensador francês Claude Henri Saint-Simon lançou a noção de rede como organização social capaz de estabelecer relações mais igualitárias. Dois séculos depois e após inúmeras mudanças económicas, tecnológicas e culturais, o conceito assumiu o papel de modelo de gestão horizontal, que permite a cooperação e a sensibilização dos agentes, ao mesmo tempo que se consolida um processo que evidencia a importância das redes na transformação sociocultural, visto actuarem como veículos que potencializam o intercâmbio e a democratização do acesso aos bens culturais.

As redes são apresentadas como cadeias de ramificações, intersecções, interconexões e interacções funcionando como significativos vectores que dão corpo ao conceito, e ao qual se acrescentam a comunidade de interesses, objectivos análogos, afectividades (económica, política, social) e a transcendência de barreiras geográficas.

Face às tendências da globalização, a rede patenteia uma forma de representar a realidade contemporânea ao entrecruzar competências e recursos configurados para incremento de acções conjuntas. Por isso, à medida que surgem novas oportunidades de concentrar actividades socioculturais a escalas supra-regionais, cresce a importância estratégica das redes

Porém, a construção dessa teia de actividades colectivas, tal como a vemos hoje, só se tornou possível com a consolidação da diversificada malha de comunicações e o avanço tecnológico. Daí a constituição das redes culturais estimular os seus actores para inter-relações que subvertem conjunturas económicas, ultrapassam condicionalismos espaciais e superam carências humanas e técnicas com vista a alcançar objectivos pré-definidos.

Por isso, na sua criação estão presentes a flexibilidade, horizontalidade e descentralização como parâmetros para uma adesão voluntária. Mas, também, fazem parte dos pressupostos a comunidade de interesses, objectivos comuns, partilha de projectos, participação no desenvolvimento cultural e agir em consonância.

Portanto, dadas as suas dimensões, as redes favorecem a superação da temporalidade, da espacialidade e solidificam a sociabilidade, pois, com as possibilidades das actuais auto-estradas das comunicações, podem actuar em tempos previamente programados; no registo da espacialidade tornam frágeis as fronteiras, permitindo interacções entre o local, o regional e o nacional; quanto à sociabilidade imanente às redes, permite que as comunidades relacionem-se facilmente, podendo mesmo integrar simultaneamente diversas organizações.

Igualmente, o carácter horizontal desse tipo de estrutura possibilita que nelas participem diferentes organismos e instituições, fazendo com que a formação de redes passe a exercer uma importante função na tessitura social, reunindo e aproximando elementos de formações e géneros diversos sob o signo da pluralidade e da cooperação cultural, similitude de objetivos e identificação de projectos comuns, operando num elevado grau de envolvimento e interacção.

Entre outras funções, a rede cultural contribui para que as comunidades sejam espaços de experimentação e aprendizagem, possibilitando o desenvolvimento pessoal e colectivo dos seus integrantes, capacitando-os para compartilhar ideias num espírito empreendedor. Além disso, incita a actuação dos sujeitos encarados como elos de uma cadeia envolvendo elementos de universos distintos, visando gerar o desenvolvimento e colaborar para a dinamização sociocultural.

Neste contexto, apesar de uma realidade, a insularidade não deve ser encarada como fatalidade, procurando-se antes contorná-la de forma positiva e se possível rentável. Assim, na luta contra a natureza arquipelágica, foram justamente o espírito de resistência e as redes sociais centradas no tradicional junta-mom que, desde os primórdios da nossa sociedade, permitiram ao cabo-verdiano enfrentar com sucesso múltiplas adversidades ao longo dos tempos.

Além disso, as conexões de redes sociais serviram, igualmente, de suporte às especificidades islenhas da nossa cultura, pelo que afinando por essa disposição, os entrecruzamentos de potencialidades e competências podem conduzir à criação de redes culturais como vivificadoras de complementaridades, por exemplo, na oferta de programas e eventos culturais apontando a repartição e usufruto comum (e que poderão ser rentabilizadas quando integradas nas agendas turísticas).

Portanto, com o estabelecimento de redes culturais conseguir-se-ão dar passos concretos no sentido de diminuir desigualdades e uma maior equidade no acesso das populações à cultura, através do estabelecimento de parcerias entre os diversos municípios no sentido de consubstanciar a redistribuição no âmbito do intercâmbio cultural.

Convém, todavia, que o dispositivo da negociação prévia seja básico na constituição dessas redes e a coerente produção de políticas de acção cultural não se circunscreva aos poderes centrais, pois a sua problematização, planificação e concretização deverão contar com a colaboração das estruturas locais/municipais e ter em conta as componentes insularidade e características específicas de cada ilha ou região.

Perante os condicionalismos insulares e orográficos, o aproveitamento deste dispositivo dinâmico será certamente capaz de garantir maior descentralização, com a promoção de eventos, espectáculos, oficinas e outras manifestações artístico-culturais, para serem também apresentados nos locais que têm pouco acesso a tais bens, não só para a sua fruição como também para incentivar a respectiva criatividade e participação.

Para tanto, considera Cássio Martinho que a rede é “um padrão organizacional que prima pela flexibilidade e pelo dinamismo de sua estrutura; pela democracia e descentralização na tomada de decisão; pelo alto grau de autonomia de seus membros; pela horizontalidade das relações entre seus elementos; e opera por meio de um processo de radial desconcentração”. (1)

Todavia, a deficiente organização das mesmas leva a que, por vezes, “não se sabe muito bem do que se fala quando se fala em rede. Fala-se em minimizar custos, em democratizar o acesso à cultura… Enquanto não for estabelecido um acordo entre o poder central e o local para definir princípios de base, não se sabe do que se está a falar e se valeu a pena o Estado estar a investir numa rede” (2). Estas sábias palavras do experiente gestor e dramaturgo Ricardo Pais, representam um alerta a ter em conta no lançamento com sucesso de redes culturais no nosso país.

Daí que no seu estabelecimento seja conveniente trabalhar com imaginação e conjugando sinergias na estratégia, planeamento, preparação específica dos agentes, aquisição ou selecção de equipamentos e outras vertentes necessárias para promover ou acolher manifestações culturais a partir de uma programação equilibrada e itinerante, por forma a englobar as populações das zonas mais recônditas, que com este tipo de actividades poderão acordar da letargia do isolamento, sempre numa aposta de continuidade, com vista a colmatar lacunas e os seus efeitos negativos.

(A Nação n.º 345, de 10 a 16 de Abril de 2014)

1- Redes, Sociedades e Territórios, Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2005.

2- Público, Lisboa, 25-05-2006.