Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
MÁS – CARAS

Nos antigos festejos do carnaval, antes da introdução de figurantes, trajes, alas, andores, blocos e batucadas nos desfiles competitivos, “brincava-se “ de forma espontânea, cada um usando a sua imaginação e criatividade para improvisar disfarces nos quais estavam quase sempre presentes máscaras (muitas vezes carantonhas que metiam medo às crianças), conhecidas (por exemplo) em S. Vicente por mascrinhas e em S. Nicolau por comédias.

As máscaras têm múltiplas formas, são confeccionadas com diversos materiais e destinam-se a díspares usos e funções. Provavelmente, a palavra máscara teve origem no latim - mascus ou masca, simbolizando "fantasma" ou, ainda, no árabe -  maskharah, significando "palhaço", "homem disfarçado".

De diferentes tipos, a máscara é um acessório normalmente utilizado para cobrir o rosto visando disfarçar a pessoa que a põe. Desde a antiguidade ao nosso tempo e nas mais variadas culturas tem sido empregue em plúridas manifestações culturais: lúdicas, religiosas, folclóricas, artísticas, rituais ou de natureza prática (máscaras de protecção).

O seu uso vem de tempos remotos, visto ter sido marcante no Egipto Antigo, cujo povo acreditava na vida depois da morte e nos seus rituais funerários empregavam máscaras na realização da mumificação. As máscaras funerárias reproduzem os traços das pessoas falecidas e têm como função honrar o defunto, ligar o espírito do morto com o além e proteger o finado dos espíritos malignos. Também na China as máscaras eram usadas para afastar os maus espíritos.

Na Idade Média utilizavam máscaras em festas profanas, não deixando entrementes de fazer parte dos “mistérios”, cena fomentada pela igreja dominante com o intuito de propagar seus dogmas. Mas é no Renascimento que a máscara adquire novas características nas “farsas” apresentadas nos castelos, onde a nobreza as usava fazendo parte do próprio traje como forma de nivelar os convidados presentes.

No contexto ritualista, alguns povos africanos ainda mantêm nas suas tradições exemplos vivos de quanto a máscara possui um valor distinto nessas culturas. Naquelas sociedades a feitura de máscaras sempre foi realizada por artesãos especializados, muitos dos quais acreditam serem como que instrumentos dos deuses, pelo que incorporam no objecto o poder espiritual associando-o aos materiais da sua confecção ou à imagem criada.

Por isso, no seu quotidiano a máscara tem uma função mágica, simbolizando na maioria das vezes seres que possuem a capacidade de protege-los do desconhecido, livrando-os de doenças e, ainda, proporcionando a vitória nas guerras, para além de homenagearem os deuses.

Entretanto, passando do papel ritualista para o teatral, a máscara acompanha a sua evolução e é possivelmente o mais simbólico elemento de linguagem cénica, visto estar presente em toda a história do teatro (cujo emblema são duas máscaras: a comédia e a tragédia).

Na civilização grega, com o seu apogeu no século V aC., período no qual o teatro também se desenvolveu a partir das festas dionisíacas, de apresentações das tragédias e comédias, no teatro Nó (Japão) e na ópera chinesa, as máscaras desempenhavam função central nas formas de comunicar com o público, representando personagens, sentimentos e as diferentes configurações da realidade abordada pelo texto

Igualmente, ao se apropriarem de diferentes elementos da cultura grega, os romanos absorveram o uso da máscara em seu teatro, denominando-as de “atelanas”, “personas” e “larvas”. No teatro romano era comum a utilização de mais de uma máscara em cena, onde de acordo com a expressão derivada da ação, trocavam-nas no decorrer da representação.

Actualmente as máscaras estão mais ligadas a festas, principalmente aos bailes e desfiles de Carnaval, mas também se vêem mascarados nas procissões e festividades associadas à Quaresma.

Acontece que já nos bailes medievais, damas e cavalheiros, no anonimato garantido pelas vestes festivas, abandonavam-se a toda sorte de extravagâncias, a tudo o que não seria permitido se identificados estivessem.

Os historiadores registam o "Ball Masquê", no século XV, como o primeiro baile de máscaras. Nele o seu uso era obrigatório e os cortesãos mascarados divertiam-se confiantes no anonimato, extravasando todos os seus impulsos reprimidos e libertando-os das normas sociais (É carnaval, ninguém leva a mal).

Igualmente, na primeira metade do século XIX, para fazerem frente ao conjunto de folguedos conhecido como Entrudo, os “bailes de máscaras” marcaram a adesão da nova burguesia capitalista à folia, vindo depois a sua incorporação noutras festividades carnavalescas.

Assim, na Itália as máscaras que eram utilizadas pelos "bobos da corte" e “artistas do riso”, transformaram-se em Arlequim, Puccinelli, Pierrot e Colombina, personagens que inspiraram o Carnaval de Veneza, no qual se tornaram peças decorativas.

Como uso terapêutico as máscaras tiveram um papel importante nos ritos mágico-religiosos para prevenir ou curar doenças, dado o seu aspecto assustar os causadores do mal. No sentido oposto, hoje em dia as chamadas “máscaras de beleza” são essenciais para acompanhar e optimizar a eficácia dos cuidados diários, devido ao seu modo de acção e à sua forte concentração de substâncias activas específicas, que limpam e preparam a pele para receber tratamentos especiais.

No que concerne às máscaras para não identificação, podem-se considerar aspectos tanto positivos como negativos. Estarão no primeiro caso as que têm por função preservar a identificação de polícias e outros corpos especiais de segurança, bem como as empregues como protecção em trabalhos específicos e actividades que comportem certos riscos.

Quanto aos aspectos negativos, mencionem-se o caso das manifestações de protesto, na medida em que a máscara impede o reconhecimento dos seus portadores, da mesma forma como nos assaltos dificulta a reconhecimento dos criminosos. Parece, também, evidente que naquelas demostrações é, ainda, uma garantia de autodefesa, visto aquelas máscaras constituírem um amparo contra armas menos letais como o gás lacrimogéneo.

Contudo, normalmente a máscara é outra cara na tentativa de diferente apresentação, para disfarçar ou ocultar a identidade de quem a usa. Faz surgir uma pessoa diversa, encarada na base da subjectividade. Daí as “máscaras sociais”, ou seja as atitudes assumidas nas mais diferentes relações das comunidades contemporâneas.

Todavia, a máscara como metáfora do anonimato impede o olhar social que reconhece e amarra cada um à sua própria identidade e ao que dele se espera, pois a suspensão do olhar/censura, prática, analítica e confessional, autoriza a fala do indizível.

Sendo sinónimo de anonimato, a máscara pode representar o bem ou ter o status do mal. Por isso, esta camuflagem sempre foi uma arma para enfrentar o arbítrio, num combate que degrada vítimas mas revela a baixa moral de seus autores.

No entanto, a actual sociedade, apesar de desigual e individualista, busca formatar, controlar e tutelar ao oferecer a todos idênticos ideais de sucesso e de consumo, ao mesmo tempo que fornece a poucos condições materiais de concretizá-los. Face aos condicionalismos e a um entrançado jogo de influências, os restantes vivem amordaçados pelas frustrações, constrangimentos e pelos conceitos modelizantes presenteados pelas elites (política e económica).

Perante a indignação, a utilização do anonimato nas redes sociais surge como recurso para a sublimação de anseios e sonhos, pois elas exercem fascínio sobre essas pessoas, justamente por constituírem uma nova forma de relação do sujeito com as suas decepções e fantasias.

Deixam de ser vividas no silêncio da imaginação e são compartilhadas. Conceito de extrema relevância para pensar as relações virtuais estabelecidas entre os habitantes do ciberespaço em conversações não presentificadas, porque adoptam pseudónimos (portanto máscaras) para comunicarem uns com os outros.

Portanto, com o advento das redes sociais pulula o anonimato através de “nomes-máscaras”, já que o internauta tem total liberdade para construir a imagem com a qual deseja se apresentar. Esta configuração poderá estar desvinculada da realidade graças a acorporeidade, que permite modificar o género, a idade, os atributos físicos, o nome, entre outras potencialidades. Deste modo, ao dizer o que não pode ser dito, o anonimato põe a linguagem em movimento, denuncia a sedimentação inorgânica dos significados, o sufocamento de palavras e sentimentos.

 

Nas palavras de Tício Escobar: “A máscara permite ao homem representar a sua condição de ser e não ser. Permite que ele recorde a temível verdade do simulacro, o recurso da ficção que deve esconder para revelar. Permite o inquietante paradoxo da comédia humana, de toda a cultura que expressa o que diz e o que silencia”.

(A Nação nº 339, 27 de Fevereiro a 05 de Março de 2014)