Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
A QUALIDADE DE VIDA NA CIDADE

      A concentração industrial e comercial em espaços que foram absorvidos pelas urbes levou as pessoas a procurarem habitar em locais próximos dos seus postos de trabalho, conduzindo a deslocações das zonas rurais para as cidades.

 

      Consequentemente, em virtude da grande concentração populacional em pequenos espaços, a vida nas urbes necessita de se apetrechar de forma a garantir um mínimo de condições de vida aos seus habitantes. Então entram em linha de conta as complicações que surgem no quotidiano das cidades, normalmente marcado pela desigualdade na distribuição das condições necessárias a uma existência minimamente favorável.

 

      Desponta nessa conjuntura a  residência, porque as pessoas precisam da protecção de um teto e nem todos possuem casa própria porque a população mais pobre não tem proventos para adquirir habitação ou mesmo alugar, vendo-se obrigada a se deslocar para as periferias. Por isso, muitas vezes as suas casas são erguidas em lugares inadequados e ficam sujeitas a uma constante insegurança devido aos riscos de incêndios, alagamentos e deslizamentos em decorrência de chuvas. Entrementes, as empresas compram grandes lotes de terrenos, em áreas consideradas de boa localização, para fazerem edifícios de habitação e comerciais, situação que conduz à conhecida especulação imobiliária dos últimos tempos, que dificulta o seu acesso aos menos favorecidos.

 

       Igualmente, um dos quesitos essenciais à vida nas cidades diz respeito aos sistemas de transporte de pessoas e mercadorias, pois gera problemas de trânsito. A convergência de elevado número de indivíduos para os espaços urbanos está relacionada com a sua mobilidade, elemento necessário para que tenham acesso aos serviços como saúde, educação, administrativos e financeiros, cuja ineficiência e morosidade obstaculizam os direitos de cidadania. Para o caso, dado que a utilização de transportes individuais gera congestionamento com o consequente aumento no gasto de tempo nas deslocações, o transporte colectivo apresenta-se como a melhor alternativa para ultrapassar a situação desde que as pessoas encontrem nele uma forma satisfatória de deslocamento.

 

       Outras das questões também ligadas a uma melhor qualidade de vida prendem-se com o saneamento básico, a oferta de água potável, serviços de recolha do lixo e o esgoto, também essenciais para garantir condições mínimas de subsistência.

 

       Historicamente, o conceito de qualidade de vida surge nos anos 60, pois antes prevalecia uma corrente essencialmente economicista que analisava o crescimento económico das sociedades e não contemplava diversos aspectos que permitem analisar o “desenvolvimento humano” das cidades, visto descurarem questões tão decisivas como o grau de satisfação das carências básicas das populações e do nível de bem-estar global.

       O conceito de qualidade de vida abrange diversas abordagens e problemáticas, pois engloba aspectos que se interligam e vão desde questões ligadas à satisfação das necessidades humanas básicas a quesitos imateriais (sentimento de segurança, participação cívica), desde conspectos objectivos a matizes subjectivas e relacionadas com a percepção individual do bem-estar, desde configurações de índole individual até conjunturas de âmbito colectivo.


       Assim, em 1994, dois anos depois da aprovação da “Agenda 21” na Cimeira do Rio, foi lançada a “Campanha das Cidades e Vilas Sustentáveis”, destinada a discutir a melhor forma de incentivar a reflexão sobre a praxis do ambiente urbano, o intercâmbio de experiências, a difusão das melhores práticas e a capacidade de influenciar tais políticas ao nível da União Europeia.

       Por isso um dos maiores desafios do Século XXI é tornar as cidades mais humanas e seguras, ao elevar os padrões de vida dos seus habitantes, refrear o crescimento desordenado, diminuir a conflitualidade social, a pobreza e a exclusão, agilizar a funcionalidade das estruturas e serviços urbanos, melhorar a qualidade dos transportes e a eficiência energética, cuidar a estética urbanística e arquitectónica, assegurar o conforto e salubridade ambiental, vectores fundamentais no cenário da melhoria das condições de vida.

       Portanto, poderemos considerar “qualidade de vida na cidade” o sistema utilizado para conhecer as vivências do ser humano, envolvendo os aspectos espiritual, físico, mental, psicológico e emocional, relacionamentos sociais, meio ambiente e outras circunstâncias que podem ser acrescidas ao “padrão de vida”, ou seja os atributos e suficiência de bens e serviços disponíveis exigidos pelo crescimento da população e a expansão da cidade.

       Como as urbes reúnem pessoas de díspares origens, o que propicia relações sociais múltiplas e diversificadas, considera o geógrafo francês Jacques Lévy que a “urbanidade” é essencialmente marcada pela conjunção de diversidade, densidade, concentração de pessoas e actividades, devendo ser avaliada em relação ao que a cidade pode oferecer tal como se apresenta.

       As cidades podem, ainda, ser avaliadas pela sua condição estética (poluição visual, preservação de fachadas) e se os ambientes são aprazíveis convidando à convivência social. Outro dado indispensável é a existência de espaços verdes e de lazer com equipamentos disponibilizados para uso dos respectivos moradores, sendo igualmente importante atentar na pertinência em contrariar condições que provocam verdadeiros "desertos" urbanos (zonas com muito movimento durante o dia e despovoadas à noite, ou bolsas residenciais com pouco movimento durante o dia).

       Todavia, embora existam muitos estudos dedicados à “sustentabilidade urbana”, poucos arriscam a definir as características da “cidade do futuro”, apesar de estarem identificados os principais factores responsáveis pela degradação da qualidade de vida nas cidades. O conceito mais consensual e que ganha expressão como indicador do desenvolvimento sustentável prende-se com consumir menos e melhor, tendo em atenção o impacto ambiental dos produtos e serviços, porque se levado à prática a utilização responsável, contribui para uma melhoria na qualidade da vida urbana.

       Ao repensar a cidade, em vez de continuar a ser um “não lugar” há que humanizá-la, para que em lugar das “florestas de cimento” haja mais espaços verdes, de convívio e desporto, porque entre outros aspectos deve, antes de tudo, assegurar aos seus moradores os recursos indispensáveis para uma vivência minimamente decente.

      Acontece que devido aos condicionalismos que contextualizaram o processo evolutivo dos povoados em Cabo Verde, na maioria dos casos não existe uma verdadeira divisão entre os espaços urbano e rural, ou seja quase que a urbe e o campo se interpenetram, aspecto que dificulta o uso de paradigmas normalmente seguidos para aquilo que tradicionalmente se considera cidade.

       Acresce que até há poucas décadas atrás a base de sustentação das populações dependia de uma agro-pecuária praticamente de subsistência, levando a que as relações entre os dois territórios fossem de complementaridade em diversas vertentes. Assim, tirando os “núcleos históricos” de algumas urbes, os restantes espaços apresentam-se como que continuidades/prolongamentos recíprocos, onde se diluem muitas características dos meios citadinos. Talvez por isso, a cidade tem sido geralmente encarada mais como uma divisão político-administrativa e menos no contexto sociocultural sustentado como um todo tipicamente urbano.

       Entretanto, cresce no mundo inteiro o número de cidades onde são impostas medidas que obrigam os cidadãos a um comportamento cívico com vista à estruturação de melhores condições de vida nas urbes. Daí espectáculos como a lavagem de carros na via pública, abandono de objectos, lixo fora dos recipientes apropriados, sejam passíveis de multas. Todavia, embora existam em cidades cabo-verdianas medidas sancionatórias para actos lesivos à qualidade de vida, não passam à prática porque as coimas previstas raramente são aplicadas.

       Convém, contudo, reconhecer que desde a Independência Nacional aos dias de hoje houve progressos, nomeadamente no acesso à habitação, educação, saúde e cultura. Mas os desafios que ainda se nos colocam são grandes, pois há que manter e se possível aumentar o nível alcançado, que deverá ser complementado com aperfeiçoamentos como ampliar o nível da segurança, diminuir a delinquência juvenil, preservar “edifícios importantes”, reconstruir zonas degradadas, requalificar determinados bairros, obras de saneamento, acessibilidades, infra-estruturas desportivas e promoção da educação ambiental de modo a incutir nas pessoas bons hábitos com vista a valorizarem o espaço que habitam e criar auto-estima nos moradores, de maneira a se sentirem motivados a cuidar do seu próprio espaço.

       Temos ainda um longo caminho a percorrer …

(A Nação nº 391, de 26 de Fevereiro a 04 de Março de 2015)