Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA EM CABO VERDE

Tendo o Cabo-verdiano uma base essencialmente escravocrata, debruçamos sobre este tema com o intuito de fornecer contributos para uma melhor compreensão da nossa evolução sociocultural, considerando que a nossa sociedade só se estabilizou com a abolição da escravatura, ou seja quando deixou de haver diferença entre “pessoas” e “peças” nas contagens da população.


Embora as ideias abolicionistas se tenham desencadeado nos inícios do século XIX, a abolição da escravatura prolongou-se em Cabo Verde por décadas, na medida em que a luta contra o tráfico comercial foi um processo moroso (subjacente tanto a causas subjectivas, como objectivas).


Ao protagonizarem a abolição do tráfico atlântico, os britânicos se apresentavam como que comprometidos numa cruzada de grande significado humanista (1), mas as suas motivações eram mais materiais do que pareciam querer mostrar. Tenha-se presente que a Inglaterra foi a primeira potência europeia a levar a cabo a revolução industrial, que modificou toda a estrutura económica do velho continente. Com o desenvolvimento do seu parque industrial, os ingleses pretendiam controlar o comércio mundial no sentido de assegurarem a colocação dos seus excedentes sem quaisquer concorrentes.


No entanto, o combate pela abolição do tráfico de escravos prosseguia, enquanto opiniões contrárias imbuíam os plantadores, fabricantes e armadores dos barcos negreiros, pois tinham investido no comércio de escravos e se erguiam em defesa da manutenção da escravatura nas colónias (2).


Portanto, digladiavam-se duas posições face à política abolicionista: por um lado a vertente moralista (visível) que conduzia a um conflito entre os bons e os maus, por outro lado, a vertente materialista (oculta), que balançava entre a necessidade do trabalho escravo na periferia e os interesses macro-económicos no centro.


Contudo, ultrapassando preocupações humanitárias, sobressaiam as questões económicas, porque ao pretenderem apenas abolir a escravatura a norte do Equador, nada impedia que continuassem a utilizar os escravos nas “culturas de plantações” fornecedoras das matérias-primas que alimentariam as indústrias europeias já mecanizadas.

O processo abolicionista

Portugal não aderiu logo de início à abolição do tráfico de escravos, mas uma vez que aqueles que resistissem ao abolicionismo eram alvo de “um juízo condenatório” por parte da Inglaterra, viu-se na necessidade de debruçar sobre o assunto, desenvolvendo ideias à volta desse tema, principalmente com o objectivo de preservar a sua imagem perante o concerto das nações.


Para tanto, Portugal começou por assinar com a Inglaterra, em 1810, um tratado em que esta se prontificava a interferir activamente de modo a serem restituídas Olivença e Juromenha perdidas por Portugal a favor da Espanha (Promessa que como sempre a Inglaterra não cumpriu), mediante o acordo português de numa primeira fase proibir e mais tarde abolir o tráfico de escravos.


Registe-se que na época a economia de muitos portugueses dependia do comércio escravocrata, motivo porque procuravam mantê-lo pelo máximo de tempo possível. Assim, quando Portugal foi coagido a entrar no processo abolicionista, os legisladores e diplomatas portugueses tentaram iludir a aplicação da abolição, o que conseguiram parcialmente, na medida em que a “abolição formal” continuou adiada até 1836, conquanto a verdadeira abolição só aconteceria efectivamente em 1842, após a atitude de força tomada pelos britânicos através do Palmerston Act (3).


A polémica acerca do tráfico de escravos ganhou ênfase e os textos a este respeito dividiam-se em duas correntes: Aquela que João Pedro Marques (4) designa como a filantropia nacionalista, onde é abordada a questão humanitária; e outra defendendo que o tráfico não era verdadeiramente desumano, na medida em que oferecia uma vida mais “civilizada” a seres que na altura eram considerados inferiores.


Porém, mercê do jogo político entre as relações externas e a economia, o abolicionismo em Portugal ficaria marcado por uma posição dúbia, que se posicionava entre algum pioneirismo das medidas legislativas e a inércia na sua aplicação.

Tráfico Clandestino

Como sua colónia e, portanto, parte integrante de Portugal, todas as fases do seu processo abolicionista se repercutiram em Cabo Verde, mas o facto de o arquipélago se localizar distante de antiga metrópole permitiu que negociantes locais e estrangeiros residentes continuassem o vantajoso negócio ainda por bastante tempo, principalmente através do chamado “trafico clandestino”.


Na realidade, foram estabelecidos acordos diplomáticos muito elaborados, instrumentos para controlar a proibição de negócio esclavagista, mas na prática surgiram estorvos difíceis de ultrapassar, devido aos estratagemas utilizados e a hábitos seculares nada fáceis de extirpar.
Como os negreiros não resistiam à sedução dos generosos lucros, astuciosamente contornaram a situação com o estratagema do contrabando camuflado sob as bandeiras dos países que melhor escapavam ao controlo marítimo. Convém, todavia, referir que os cabo-verdianos não actuavam sozinhos. Dado não possuírem capital suficiente, constituíram-se em parceria com os espanhóis, beneficiando da premência destes em adquirir mão-de-obra para as suas colónias.
Os negociantes de Cabo Verde tinham um pormenorizado conhecimento dos rios e portos esclavagistas, bem como dos processos de comércio, enquanto os espanhóis arriscavam as suas finanças, correndo os riscos inerentes ao empreendimento, mas ambos acabavam por obter avultados lucros. Este esquema atingiu proporções tais que o governo central português se viu obrigado a intervir, proibindo o embandeiramento de navios estrangeiros em Cabo Verde (5).
Verifica-se, pois, que o tráfico clandestino se mantinha, principalmente porque o poder económico ligado ao grande negócio dominava o poder político e não interessava a nenhuma das partes o desaparecimento desta fonte de rendimentos. Quando a proibição foi decretada, tentaram prolongá-lo em regime de clandestinidade, contando com o apoio de elementos governamentais que nem sempre estavam isentos de culpas.
Comissões Mistas

Também, com vista a estrangular este comércio foram estabelecidos tratados entre Portugal e Inglaterra no sentido de “vigiar mutuamente os seus vassalos respectivos [para que] não façam o comércio ilícito de escravos”(6). Neste sentido, “para julgar com menos demora e inconvenientes os navios que poderão ser detidos como empregados em um comércio ilícito de escravos, se estabelecerão (…) duas Comissões Mistas, compostas de um igual número de indivíduos das duas Nações (…) Bem entendido todavia que uma das duas Comissões deverá sempre residir no Brasil e outra na costa de África”(7).
Tendo em conta esta pormenor, a Comissão Mista nos domínios portugueses viu-se confinada à instalação no Brasil, deixando à Inglaterra o poder de decidir onde estabelecer a outra Comissão na extensa costa africana, ficando a descoberto toda a área circundante de Cabo Verde, onde justamente se processava a maior parte do tráfico clandestino.
 Essa Comissão Mista ficou instalada na Serra Leoa e apesar de ter sido criada por pressão da Inglaterra com objectivo de diminuir o tráfico clandestino, a verdade é que também os ingleses continuavam a traficar escravos.

Acontece que uma vez aprendidos por transportarem escravos, as embarcações eram encaminhadas para a Serra Leoa. No entanto, não detectamos informações concretas sobre o destino dado a esses escravos depois da captura dos barcos, nem tão pouco se foram vendidos ou mesmo postos em liberdade. Apenas se sabe que pertenciam a quem capturasse o navio, quase sempre a marinha inglesa.


Não obstante, a partir do julgamento de embarcações apreendidas, verificaram a existência de muitas lacunas nos tratados, que eram aproveitados pelos contrabandistas, situação que abriu caminho ao tratado de 1842 entre Inglaterra e Portugal, tentando acabar definitivamente com o negócio.
Neste contexto, em 1843 foi criada mais uma Comissão Mista e instalada na ilha da Boa Vista com o objectivo fundamental de travar o tráfico clandestino que ainda se praticava nesta zona estratégica.

Junta da Protecção dos Escravos e Libertos


Ainda relacionado com a abolição da escravatura, Portugal criou em 1854, legislação para vigorar nas suas antigas colónias, na qual considera, “o Estado o patrono e tutor natural dos escravos, dos libertos e de seus filhos. O exercício desta tutela é confiado em cada uma das províncias ultramarinas, a uma junta estabelecida nas capitais delas, que será denominada Junta Protectora dos Escravos e Libertos”. (8)
Deste modo a Junta de Protecção de Escravos e Libertos passou a desempenhar diversas funções, visto ser extensa a lista de suas tarefas em prol da defesa dos escravos e libertos em Cabo Verde.


Contudo, a abolição total do “estado da escravidão em todos os territórios da monarquia portuguesa” (9), apenas foi decretada em 1869, mas mesmo assim passaram para a condição de libertos e “sujeitos a todos os deveres concedidos e impostos pelo Decreto de 14 de Dezembro de 1854”(10).
Constata-se, portanto, que apesar de lhes ter sido concedida uma pseudo-liberdade, os escravos prosseguiam sujeitos a trabalhar para o seu antigo senhor, não podendo, por isso, exercer o livre arbítrio de decidir com quem preferiam trabalhar.


Por isso os senhores recorriam à utilização deste subterfúgio no sentido de continuarem a usufruir de mão-de-obra barata, na medida em que praticamente quase não pagavam aos libertos, concluindo-se que os propósitos determinados no referido Decreto de 1854 só se concretizariam plenamente passados vinte anos.


Contexto Cabo-verdiano


Embora Cabo Verde se tivesse transformado num entreposto de considerável importância, cedo iniciou-se o seu declínio, provocado não só pela desestruturação de monopólios no comércio de escravos, como também pelo corso movido por franceses e ingleses e, ainda, pela concorrência desenfreada de estrangeiros em zonas pertencentes de direito a Portugal.


Nas ilhas cabo-verdianas os proprietários rurais não estavam sensibilizados nem tão pouco preparados para alterar as bases da sua gestão agrária. Assim, assistiu-se a um duro golpe na economia do arquipélago toda ela baseada na mão-de-obra escrava, ao ser decretada a “abolição imediata do referido tráfico em todos os lugares da costa se África ao norte do Equador”, suspendendo não só o lucrativo negócio, como também impedindo a renovação dos contingentes de mão-de-obra destinada à agricultura praticada em Cabo Verde, o que abalou as estruturas agricultoras.


Acresce que a nível interno sucediam-se confrontos entre morgados (e entre estes e as autoridades), a que se juntavam as secas prolongadas, que em conjunto originaram a desarticulação das povoações litorâneas e dispersão da população pelo interior das ilhas.


Igualmente, as frequentes sublevações constituíram um poderoso factor de desestabilização dos utilizadores da mão-de-obra escrava, necessária para viabilizar o seu aparelho económico dando, assim, indicações que a escravidão caminhava para a extinção.


Também a relação morgado-rendeiro também não era pacífica, na medida em que este último se sentia muitas vezes enganado nos quantitativos das rendas. Nos anos de poucas chuvas a tensão entre os dois estratos agudizava, porque não colhendo o suficiente para o seu sustento, o rendeiro rogava-se no direito de não pagar a renda e o morgado por seu lado exigia receber o valor estipulado.


Acrescente-se que a actuação dos governadores e ouvidores gerais tendiam para a prepotência e abuso do poder, estribando-se no facto de possuírem guarda-costas, recrutados na “fina flor” de marginais e degredados, que eram suportados pela fazenda real.


Outrossim, para fazer frente a possíveis retaliações, a maioria dos morgados detinham um séquito que os protegia quando se deslocavam aos centros urbanos. Vindos do interior, chegavam sempre acolitados por “escravos domésticos”, exibindo as suas armas e atemorizando os próprios governadores e capitães-mores. Portanto, quando o ambiente se tornava tenso assistia-se a demostrações de força de ambos os lados.


A instituição escravocrata revelava-se difícil de manter, porque observava-se um clima de insegurança, um estado de tensão latente durante anos, que actuava como poderoso agente de corrosão na organização político-conómica, desgastando paulatinamente o controlo do pessoal que os senhores necessitavam para viabilizar o seu sistema económico e dando indicações claras de que a escravidão caminhava a passos largos para a dissolução.
                                                                                  
Notas
1- Manuel Carlos Ferreira de Almeida, Migrações, Forjadas e Dinâmica Demográfica (Tese para o grau de Doutor), Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1993, p.208.
2- Aperçu Historique sur l’Abolition de le Négres ou Portugal et dans ses colonies presentá á la Commission d’Experts en Ministière d’Esclavage” de la S. D. N., p. 136.
3- Palmerston Act foi a adaptação pelo Parlamento Britânico do Bill proposto pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Grã-Bretanha, Lord Palmerston, através do qual se autorizavam os navios britânicos a capturar as embarcações portuguesas suspeitas de se empregarem no tráfico de escravatura.
4- João Pedro Marques, “O Mito do Abolicionismo Português ”in Actas do Colóquio “ Construção e Ensino da História de África” , Lisboa, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações Portugueses, 1995.
5- AHN, Cabo Verde, SGG, Cx. 73.
6- Art.º. I da “Convenção Adicional de 1817” in Tratados Aplicáveis ao Ultramar, coligidos e anotados por José de Almada, Vol. I, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1942.
7- Art.º. III da ”Convenção Adicional de 1817” in Tratados Aplicáveis ao Ultramar, coligidos e anotados por José de Almada, Vol. I, Lisboa, agencia Geral das Colónias, 1942.
8- Diário do Governo, nº 303, 28/12/1854, Art.º  9 e 10.
9- B.O. Cabo Verde, nº 46, 16/11/1857, Titulo VII, Art.º 27, p. 275.
10 - AHN, Cabo Verde, SGG, Cx. 576, Junho de 1865.

(A Nação n.º 313, de 29 de Agosto a 04 de Setembro e n.º 314, de 05 a 11 de Setembro de 2013)