Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
MEUS TIPOS INESQUECÍVEIS

Dona Lizeth

Gostariamos de partilhar memórias da maneira como uma personalidade feminina conseguiu singrar num mundo na altura ainda bastante machista. Acontece que antes lugares apetecíveis, mas verdadeiros palcos de guerras e de competição, os cargos de chefia estavam destinados a homens e aos mais velhos, alguns já com rugas e cabelos branco, situação actualmente ultrapassada, ao mesmo tempo que passou a ser um desafio também para as mulheres. Neste sentido dizia Simone de Beauvoir (1): “Não se nasce mulher: Torna-se…”

Exemplo de como as aptidões coerentemente aproveitadas ajudam a ascender a altos cargos nas actividades profissionais, é o caso de Dona Lizeth que, nos finais dos anos 60 do século passado, se alcandorou a gestora de uma empresa com sucesso numa urbe cosmopolita cabo-verdiana.

Tivemos o grato prazer de conversar com ela e ainda conservamos a sua figura de mulher com o físico bem proporcionado, cabelo cuidado, maquilhagem perfeita, unhas tratadas, que, empenhada em manter o “status” de executiva, trazia sapatos de salto alto e vestia saia e casaco de marca, complementado por uma espaçosa carteira enfiada no braço. Não se podia ficar indiferente àquela presença feminina…

Naturalmente dinâmica, cultivava a versatilidade no desempenho de tarefas, sempre pautando pela assertividade e pelo perfeccionismo, não descurando, todavia, a compreensão e o diálogo na procura de soluções, aos quais acrescenta a solidariedade e o altruísmo (sem dúvida uma conjunto de atributos).
Questionada acerca do seu sucesso, respondeu que na sua vida pessoal e profissional sempre procurou manter-se activa na conquista diária de factores como a motivação, perseverança, espírito de liderança, acrescidos da força de vontade e auto-estima, que considera fundamentais para se chegar mais longe e fazer face a qualquer adversidade que surja ao longo do percurso.
 
Porém, afirmava que para evoluir na sua actividade não foi necessário esperar pelas campanhas do “Dia da Mulher”, nem tão pouco se deixou influenciar pelas badaladas associações ligadas ao género ou muito menos dependera das tão faladas “quotas”, porque empreendedora e talentosa, chegou ao topo subindo a pulso, na medida em que o feminino e a idade nunca constituíram entraves na sua progressão profissional. Pelo contrário vangloriava que tais atributos nunca beliscaram minimamente a sua imagem de credibilidade e segurança.

Daí que, ressalvando as devidas distâncias, tendo em conta a visão da época colonial a propósito do desequilíbrio na equidade dos géneros, neste campo considerava Dona Lizeth tal depender principalmente do contexto em que se aborde a questão, pelo que “concordava e não concordava” conforme o ângulo eu que o problema fosse encarado. Concordava como forma de luta contra a discriminação, visto ser apologista da igualdade entre as pessoas. Defensora da solidierldade, preferia antes o “Dia Contra a Discriminação”: - “Talvez fosse utopia, mas era nisso que acreditava”. Aliás, via como algo redutor o “Dia da Mulher”. Mulher porquê? Por ser mãe? Por ser um ente reprodutor? Pode-se ser mulher sem essa função. Dizia-se não feminista e pela celebração da vida. Para ela o importante é considerar a mulher ser pensante, com uma mente criadora, inteligente e livre, o que não lhe impede ser bonita e ter o corpo com tudo no sítio, ser boa companheira, boa amante e boa mãe.
Por isso, em lugar do discurso “feminista” desconstrutivo, apresentava-se num tom aparentemente anacrónico ao proceder a uma revisão empática do feminino, acrescentando que em muitos países o “Dia da Mulher” está a ser comemorado apenas numa perspectiva de efeméride. Saliente-se, a propósito, que ao longo dos cerca dos 40 anos que já leva de escrita, a inglesa RUTH RENDELL registou nas suas dezenas de livros as transições sociais, da violência doméstica à mudança do estatuto da mulher (não mais a “mulher cativa”, nem a “femme fatalle”, mas a “executiva”)., mas verifica-se, a este esguardo, que nunca embarcou nas modas que açambarcaram o género nas décadas recentes nalguns países.

Dona Lizeth pertencia à geração que em Cabo Verde as mulheres começaram a trabalhar em determinados campos antes reservados aos homens. Porém, mesmo assim registava-se ainda alguma misoginia e certa dificuldade de aceitação, devido a obstáculos ao nível corporativo, que felizmente têm vindo a atenuar. Ela dizia que o importante é ser capaz e lutar para atingir tais metas.

Nessas trocas de pontos de vista, informou-nos que, executiva precoce, ocupou o cargo sem medos nem tabus, visto sua tendência pela liderança manifestara-se ainda bem cedo, pois esteve sempre em evidência nos seus tempos de estudante, aptidão que depois desenvolveu com a prática do desporto, um excelente auxílio para se inspirar em situações de desafio, espírito de equipa, missão, cumprimento de objectivos e persistência, que são apanágio daquele campo específico.

Detentora de um carisma natural, tinha o carácter de mulher determinada e interventiva. A sua maneira de falar sem rodeios não deixava ninguém indiferente, porque tinha forte querer e sempre acreditara que nada cai do céu, visto ser preciso lutar para alcançar algo, construindo oportunidades.
Observava, entretanto, Dona LIzeth não existirem trabalhos marcadamente masculinos ou femininos, embora aceitasse haver profissões em que o género possa ter influência, caso da distribuição de papéis em certos espectáculos em que o corpo e a matéria podem ser de considerar.

Daí orgulhar-se por o reconhecimento do seu talento profissional não passar por truques de gineceu, nem fruiu um percurso de privilégios. Pelo contrário, nunca teve a vida facilitada e começara a trabalhar bem cedo. Quando jovem fora sempre extrovertida e brincalhona, mas dedicava-se com afinco aos estudo, não obstante disponibilizar tempo para as traquinices próprias daquelas idades. Terminado os estudos, olhos virados para o estágio que fez nas áreas da gestão e administração, não descurara nunca o desporto, que era quase uma paixão.

Consciente das dificuldades que teria de enfrentar pela vida fora procurou apetrechar-se atempadamente e com o ingresso na especialização ampliou os seus conhecimentos, que acrescidos de uma visão estratégica, levaram-na a aceitar o desafio, porque encarava a capacidade de chefia como uma questão de competência e confiança. Dedicara-se de uma forma absorvente que levava a trabalhar por vezes em stress e quase no máximo das capacidades. Outrossim considerava que o segredo do êxito estava na dedicação ao trabalho, com o foco bem definido e na elevada idoneidade, motivação e persistência, aliadas à vontade de se aperfeiçoar.
Esta provação constituíra-se numa curva de experiências aceleradas, que a levaram a progredir rapidamente no ramo. Mas tudo foi conquistado e a muito custo. Para vencer estribou-se no seu espírito combativo, no gosto pelo desafio e na paixão por aquilo que fazia, para além de aceitar abandonar a zona de conforto e correr riscos embora calculados.

Centrando-se na estratégia do empreendedorismo, desenvolveu iniciativas e opções a partir de uma ideia geradora de negócios, implicando o desenho de processos que conseguissem determinar a capacidade de uma gestão integradora de competência e técnicas conducentes ao desenvolvimento.

Conhecendo bem a realidade local, procurara acautelar possíveis fracassos, precavendo-se com alternativas coerentes. Assim, ao longo do percurso aconteceram algumas borrascas que serviram para testar a sua competência de líder, a qual se foi impondo quase naturalmente pela maneira como as conseguiu debelar.
Dona Lizeth acreditava na capacidade emocional feminina, mas também na perspicácia e, como tal, mostrava-se apta para aliviar tensões, criar pontes de entendimento, práticas sensíveis na resolução de determinados problemas laborais.

Deste modo, servindo-se de uma visão estratégica e capacidade analítica, associadas a uma boa dose de humildade e carisma, no seu desempenho se mantinha serena perante as adversidades e sem ser irredutível nas suas decisões, sabia dizer não sem agredir o interlocutor.

Com o olhar vivo num rosto que não denunciava a verdadeira idade, a experiente gestora recusava-se a passar o dia no gabinete e apenas na actividade de executiva, liderando uma grande equipa de empresa de renome, conseguia conciliar as enormes exigências profissionais com a vida familiar - esposa e mãe de dois filhos, que não lhe representam qualquer obstáculo na prossecução das suas actividades.

Embora pragmática, encarava haver um tempo para pensar e decidir e outro para agir e executar, para além da necessária flexibilidade para corrigir rotas quando o evoluir dos acontecimentos o aconselhasse. Para tanto escutava os colaboradores, procurava ler os sinais verbais e não verbais do pessoal e promovia o feedback, visto saber dialogar, ouvir sugestões e ter a mente aberta para aprender com os outros.

Reconhecida por todos, cumpria cabalmente o seu papel e com o apoio dos colaboradores procurava superar-se a si própria, tendo em conta os constrangimentos da nossa sociedade machista, que dificultava quem usa saia e saltos altos. Assim embora existissem complexos quanto á competitividade e às capacidades directivas das mulheres, Dona Lizeth provou cabalmente que na altura já era possível ter sucesso sem quaisquer mimetismos em relação aos homens.
                                                                                                                          
Notas
1 - Escritora francesa (1908-1986).

(Revista Krioula n.2, Julho de 2011)