Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
REVISITANDO A ILHA DOS DRAGOEIROS

A viagem é um catalisador de destinos, mas também contribui para a formação das pessoas através dos contactos com povos e diferentes culturas, fornecendo conhecimentos que possibilitam uma visão mais cuidada do outro. Dizia Fernando Pessoa que “a viagem é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes”. Daí resultar que, igualmente, pode constituir uma revisitação, qual romagem recheada de recordações a lugares e pessoas que nos marcaram indelevelmente.
 
Com o aproximar do avião, espreitando pela janela, S. Nicolau surge lá em baixo, estendendo-se alongadamente num acastanhado. Divisam-se antigas crateras e à sombra oblíqua das montanhas despidas de vegetação e rochas cor do aço, seguem vales, escarpas num basalto escuro e praias, até que a aeronave se faz à pista.
 
Finalmente livre do cinto de segurança, esticam-se as pernas e ao assomar na porta, um quente bafo trás o reconfortante regresso à Terra-Mãe, ao lugar onde ficou o umbigo enterrado.
 
Logo à saída da aerogare a morabeza do sanicolaense acolhe o recém-chegado num amplexo bem cabo-verdiano, posto que o olhar se espraia pela Ladeira Grande, com as ruínas da casinha onde decorre parte do romance Chiquinho, de Baltasar Lopes da Silva, e a vista prolonga-se pelo edifício no Calejão que acolhia os estudantes do antigo Seminário-Liceu na época mais quente do ano e que depois alojou o Orfanato Santa Isabel para albergar meninas.

Repleta de pessoas a carrinha arrancou aos solavancos estrada fora rumo à Ribeira Brava, atravessando um cenário castigado pelas secas. De onde em onde, acácias retorcidas ou a espinheira que, para resistir ao vento, se prolongou por alguns metros quase rente ao solo.
 
Contornada a curva do Lombinho, pontuada pela antiga residência dos Saint Aubyn e mais tarde sede da Missão Nazarena, apresenta-se-nos a urbe escondida entre montes austeros e desenvolvendo-se num casario derramado pelas encostas do vale, onde corria a ribeira no tempo d´azáguas saltando bravia entre pedras (donde lhe veio o nome).

 Assim se chega ao Terreiro, lugar de centralidades e convergência de pessoas vindas de toda a ilha, redistribuindo chegadas e partidas. Também ali se iniciam e terminam as procissões solenes, se fazem comícios políticos e os desfiles do Carnaval. Local de memórias abraçado pelo casario de traça senhorial e com suas torres irrompendo para o céu, o vetusto templo que serviu de Sé-Catedral de Cabo Verde e Guiné durante quase dois séculos, ou seja até que o bispo D. Faustino a transferiu para a Praia, sem dar a mínima satisfação a um povo que sempre o acarinhou respeitosamente.
 
Enquadrando o espaço encontra-se o jardim (que já teve várias denominações), outrora lugar de encontro dos anciãos para espairecerem ao desamparinho, crianças brincarem até à hora do jantar e noite cerrada parezinhos de namorados se enroscarem languidamente nos locais mais recatados.

Frente ao mesmo e implantado em alta coluna, encontra-se o busto do Dr. Júlio José Dias, benemérito a quem reconhecidamente o povo ergueu o monumento. Ao fundo sobressai a antiga Escola Central que formou muitas gerações e agora transformada em Biblioteca Municipal.


Deste largo parte a Rua Direita (bastante torta apesar do nome, mas que ligava directamente os poderes civil e religioso) na qual se localizavam as principais casas comerciais. Nesta correnteza alcançamos o edifício dos “Paços do Conselho”, que chegou a albergar a Administração do Conselho, a Câmara Municipal, o Registo Civil, a Recebedoria das Finanças, a Conservatória Predial e os Correios, que numa salutar convivência (por facilitadora dos utentes) preenchiam este emblemático imóvel localizado no núcleo histórico da Ribeira Brava.
 
Continuando pela Passagem e Chã de Abrantes alcança-se o venerando Seminário-Liceu, que formou doutos sacerdotes e uma plêiade de homens ilustres que se destacaram em vários ramos do saber, da cultura e da administração púbica, tanto em Cabo Verde como nas outras colónias africanas de Portugal. Estando bastante degradado, os responsáveis pela respectiva manutenção pouco percebiam de recuperação do Património e nessa intervenção infelizmente descaracterizaram-no bastante.
 
Prosseguindo, ao atravessar o Bairro de S. João, encontra-se a “Praça da Divina de Nossa Senhora da Graça”, onde em noites cálidas de Setembro ecoam as vozes ensaiando-se para integrar a procissão de Nossa Senhora do Rosário. Neste seguimento encontramos o miradouro do Pasmatório, que oferece uma panorâmica abrangendo todo o verdejante vale que, vindo da Maiama, passava pela Cancela e prolongava-se pela Ribeira de João e Campinho até atingir a Água das Patas. Para nosso desconsolo, dele bem pouco resta actualmente, devido à escassez pluviométrica que vem devorando o verde. Brotam lembranças do tanque da Pchena, que servia de piscina aos estudantes em férias, num convívio complementado por incursões nas propriedades vizinhas para deliciar com suculentas mangas e apetitosas papaias.
 
Nesta sequência se caminha para a Estancha de Baixo, com passagem pelo salão onde aconteciam os animados Bailes de Carnaval do Copa (Recorde-se, a propósito, as visitas recíprocas dos vários grupos carnavalescos ao longo da noite, demonstrando não existir rivalidades) e mais adiante encontra-se o complexo das instalações escolares, o polidesportivo e o campo de futebol, entremeados por habitações que ainda mantêm a traça tradicional.
 
Logo à saída deste percurso, que corresponde praticamente às delimitações do “Centro Histórico da Ribeira Brava” agora elevada a Património Nacional, se divisa a Prainha lá em baixo (bastante frequentada pelos banhistas) e a caminho do Boqueirão espreitem-se as ruínas da casa onde nasceu o poeta José Lopes da Silva, para depois chegar aos Carvoeiros, com os canaviais destinados ao fabrico do bom grogue de S. Nicolau.
 
Depois, embrenhando pelo vale se atinge Queimadas, possuidora de muitas árvores frutíferas, canaviais e bananais, sede da Freguesia de Nossa Senhora da Lapa, cuja romaria acontece em Setembro, com a assistência de gente oriunda das aldeias vizinhas e muita animação em que não faltam os afamados “bailes populares”.
 
Posto isto, suba-se ao plaino da Fajã, antes zona de sequeiro, mas que graças à abertura das galerias, se tornou na mais importante área de cultivo no sistema de regadio em toda a ilha. Adiantando para o Lompelado, divisa-se no recanto do Pico Agudo uma antiga mansão rodeada de frondosas árvores de fruto fazendo jus ao seu excelente microclima.
 
Nesta ambiência avança-se para o Cachaço, que possui a maior concentração a nível mundial de dragoeiros espontâneos (Dracaena Draco, espécie em vias de extinção), com a capelinha de Nossa Senhora da Cintinha alvejando no cimo do monte. Local de peregrinação em Maio, extrapolando festividades imbuídas do tradicional sincretismo no contraponto do recato devocional para pagar promessas ou rogar por boas azáguas e as demonstrações de esfusiante alegria no contexto/pretexto da festa, porque depois da alma lavada passa-se ao convívio, comes-e-bebes pelas tasquinhas e muita música ambiente, complementada por bailes noite fora.
 
Chegou a altura para uma escalada ao cimo do Monte Gordo. Ponto mais alto da ilha e de onde se podem divisar as outras irmãs em dias claros. Goza de um excelente microclima que possibilita a preservação de diversas espécies da flora autóctone, facto que conduziu à criação de um Parque Natural destinado a proteger esse rico património. A vivência naquele espaço está retratada no romance homónimo, de autoria da Leopoldina Barreto, que infelizmente já nos deixou.
 
Percorrendo o Caminho Novo, que contorna uma panorâmica do vale que se estende até ao mar, rumemos agora para o Tarrafal, sede do novel concelho. Segue-se uma paisagem apenas salpicada por poucas casas, até lobrigar a baía com o seu cais e o complexo da mais antiga fábrica de conservas de peixe do arquipélago, que continua ainda a laborar, para produzir as “latas de atum” que constituem uma das apetecidas “encomendas” para os parentes emigrados. As areias finas e negras das praias deste povoado litorâneo são famosas pelas suas propriedades medicinais, principalmente para tratamento de doenças reumáticas.
 
Deixando esta povoação e continuando pelo Barril, com o seu farol, chega-se à Praia Branca magistralmente cantada pelo Paulino Vieira. Localidade renomada pelos festejos de S. João, que começam na véspera á noite com a grande luminária queimando braçados de macela (Naupilus smithii) que os rapazes iam colher pelos campos. Felizmente mudaram para outros combustíveis, visto aquela planta silvestre ser agora uma espécie protegida.
 
Tomando a nova estrada atinge-se à Ribeira Prata, cujo nome adveio dos reflexos do sol espelhando prateados nas águas que antes cobriam o fundo do vale verdejante. Localiza-se nesta aldeia a Rotcha Escribida, fonte de lendas e cantada na conhecida morna com o mesmo nome.
 
Concluído este “périplo imaginário”, passível de concretização no contexto dos roteiros e itinerários turísticos potenciados pelas actuais propostas visando o desenvolvimento de Cabo Verde, se nos aflorou à memória outra viagem bem diferente, em que numas férias liceais um grupo de estudantes percorreu a pé a ilha de lés-a-lés com pausas nos lugares mais representativos. Trajo desportivo, mochilas bem aviadas e uma tenda de campanha, cumpriu-se essa gostosa aventura. Todavia, a referida tenda nunca chegou a ser montada, porque em todas as paragens, simpaticamente, as gentes locais fizeram questão de fornecer ao grupo pernoitas em ambiente familiar.
 
Bons tempos aqueles!

(Magazine Cultural/Esquina do Tempo, 3 de Março 2012)