Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
MEMÓRIA E HISTÓRIA

Face à importância do Património Intangível integrado na cultura cabo-verdiana, nomeadamente a tradição oral e o riquíssimo acervo que as “bibliotecas vivas” são detentoras, urge ser preservada a nossa “memória colectiva”, componente imprescindível no contexto da construção da História Local.

O chamado “dever de memória” (que quase se tornou uma fórmula retórica) veio trazer, com grande intensidade, questões éticas, subjectivas e políticas para o campo da historiografia. Daí o tema “Memória e História” ser dos mais abordados a partir do século XIX e muitos estudiosos se terem debruçado sobre o que une e separa estas duas noções.

Acontece, também, que “o conceito de memória é crucial para o domínio das Ciências Humanas (fundamentalmente a história e a antropologia), e se ocupa muito mais da memória colectiva que das memórias individuais, importando neste sentido, descrever sumariamente a nebulosa memória no campo científico global”[i].

Como capacidade para conservar conhecimentos, a memória reenvia-nos em primeiro lugar para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode actualizar impressões ou informações passadas, que ele representa como suportes identitários.

Assim, Memória e História, desde Halbswachs (com a sua teoria de “Memória Social”) a Pierre Nora, estas áreas constituíram pares dicotómicos, formas distintas de elaborar o passado, entraram num processo de compatibilidade e a historiografia foi frutuosamente contaminada pela memória.

Defendendo essa contaminação e concedendo-lhe pertinência metodológica para o trabalho do historiador, o italiano Enzo Traverso (O passado, modos de usar) veio mostrar como tal é igualmente responsável para um “uso público da história” (expressão de Habermas) que dá origem a utilizações perversas, selectivas, instrumentais, politicamente orientadas em função das forças e das visões ideológicas.

O conceito alemão de Vergangenheitsbwaltigung (a que Traverso se refere) de resolução e superação do passado é bastante significativo não apenas pela emergência da memória, mas ainda pela entrada em cena, no espaço da historiografia, de um vocabulário vindo de outros campos de análise (luto, trauma, retorno, etc.).

Nesta concepção, “o estudo da memória abarca áreas como a psicologia, psicofisiologia, neurofisiologia, biologia e, quanto às perturbações da memória, das quais a amnésia é a principal, a psiquiatria. Certos aspectos do estudo da memória, no interior de qualquer uma destas ciências, podem evocar, de forma metafórica ou de forma concreta, traços e problemas da memória histórica e da memória social”[ii].

Assim, as investigações sobre “memória social” têm como objecto a observação das diferentes maneiras como somos moldados pelo passado, conscientemente ou inconscientemente, na esfera pública ou privada, de forma material ou comunicativa e de modo consensual ou conflitual, constituindo um vasto campo de estudo que atravessa diferentes áreas disciplinares.

Enquanto a “memória histórica” representa uma corrente de pensamento contínuo ou continuado, já a “memória individual” é autobiográfica, embora o primeiro conceito, do ponto de vista do sujeito, reflita as transformações dependentes do lugar que cada individuo ocupa na sociedade.

No entanto, a “memória colectiva” constitui um dos mais recentes domínios da historiografia contemporânea. Tema inicialmente estudado por Maurice Halbwachs (colaborador da Escola dos Annales) que, fortemente influenciado pelo pensamento de Durkheim, viria a inaugurar uma conceptualização da memória enquanto fenómeno eminentemente colectivo: “Foi o responsável pela sua introdução no léxico das Ciências Sociais, ao mesmo tempo que propôs a ideia de que memória enquanto laço de filiação entre os membros de um grupo com base no passado colectivo, lhe confere uma visão de imutabilidade, ou seja, a âncora de uma comunidade assegurando a sua continuidade no tempo e no espaço”[iii]. Segundo o mesmo autor, a memória abrange todas as ideias e tradições herdadas e forjadas por uma sociedade, existindo, por isso, várias “memórias”, tantas quantas as funções e os grupos sociais nela existentes.

A “memória colectiva” resulta, pois, de uma experiência contínua e de totalidade, experiência vivida que alimenta a consciência de um grupo e nela permanece viva. Portanto, a pluralidade de “memórias colectivas” baseia-se na especificidade de cada grupo integrado em determinado espaço e tempo.

Por sua vez, quando a “memória histórica” se identifica com a “memória nacional”, corresponde à construção de uma visão global dos acontecimentos (o caso concreto de Cabo Verde). Deste modo apreendida tem um papel limitado na estruturação das “memórias colectivas” dos diversos grupos mas, tal como estas últimas, imobiliza os acontecimentos no tempo, numa certa ilusão de estabilidade e equilíbrio relativos.

Segundo Maurice Halbswachs, “a memória social é o laço afectivo e de filiação entre os membros de um grupo com base no seu passado colectivo. Sendo as recordações construções feitas pelos grupos sociais”[iv]. De acordo com este estudioso, a “memória colectiva” de uma sociedade depende do enquadramento em que o grupo actua na sociedade. Por isso, a “memória de grupo” corresponde à síntese das “memórias individuais”, pelo que, consequentemente, a apreensão do passado do individuo está fortemente ligado a essa consciência grupal.

Pierre Nora (La Memoire Collective) afirma que o próprio passado é a evocação da Memória e da História, na medida em que esta começa onde aquela encerra o seu relato. O mesmo historiador acentua, “é certo, que até muito tarde história e memória se confundiram, ao ponto daquela nos parecer como memória colectiva de um grupo”[v].

Uma das importantes questões da “cultura contemporânea” situa-se num entrecruzamento a respeito pelo passado – seja ele real ou imaginário – e o sentimento de pertença a um dado agregado, entre a consciência colectiva e a preocupação com o individual, entre a memória e a identidade: “Os temas fundamentais da memória são reflexivos nas práticas culturais, nas representações colectivas, nos heróis, sendo crucial no cenário cultural contemporâneo e na noção de lugares de memória” [vi].

Acontece que “memória social”, segundo Pierre Nora, se ancora nas posições materiais e é apreendida pelos indivíduos, porque que os “lugares funcionais” alcançam o exercício de alicerçar “memórias colectivas”, porque enquanto os “lugares simbólicos” enquadram o ambiente e revelam onde aquelas se expressam.

Os “lugares de memória” são construções históricas e a importância do seu estudo advém do respectivo valor enquanto testemunhos reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e dos interesses que, conscientemente ou não, os revestem de uma função icónica, serem globalizante e não terem fronteiras claras.

Considera Enzo Traverso que a recordação do passado se transforma em “memória colectiva” e essa manifestação está patente em museus, comemorações, prémios literários, filmes, séries televisivas e outras manifestações culturais. Para este autor “História e Memória” são duas esferas distintas que se interligam constantemente e partem de um mesmo objecto para a elaboração do passado.

Porém, a memória apresenta o passado como um caleidoscópio, numa multiplicidade de configuração diferentes. Desta forma, o passado é constantemente reelaborado segundo as sensibilidades éticas, culturais e políticas do presente, casos de emissões televisivas, testemunhos realizados numa sala de tribunal, arquivos privados ou álbuns de fotografias de família.

Contudo, o passado institucionalizado em museus ou noutros suportes transforma-se em “memória colectiva”, uma vez que foi seleccionado e reinterpretado de acordo com as sensibilidades do presente: “Assim forma-se o que se poderá chamar o ´turismo da memória`, com a musealização de sítios históricos, exposições nas infra estruturas de recepção e estratégias de publicidade específicas”[vii].

Da mesma feição, os centros de investigação e as associações de história local podem ser incorporados nessas “estruturas turísticas”, aumentando a sua sustentabilidade. Observa Enzo Traverso, que esta realidade é semelhante ao que “Hobsbawm havia chamado ‘a invenção da tradição’: um passado real ou mítico em torno do qual se constroem práticas ritualizadas para reforçar a coesão social de um grupo ou de uma comunidade, dar legitimidade a certas instituições e construir valores no seio da sociedade. Esta construção da memória reflecte um uso político do passado”[viii].

Alguma quase obsessão pela memória advém da necessidade da sua perpetuação, através da passagem natural de uma geração a outra, preservando as identidades, no sentido de enfrentar as típicas influências da modernidade e de vivências individuais, frágeis, voláteis ou efémeras.

Outrossim, ao analisar os testemunhos do passado, para além dos arquivos e outros documentos materiais ou escritos, a história do século XX integra as fontes orais. Portanto, a memória, da qual é uma dimensão, não deixa de ser um objecto da história.

No entanto, “a memória é qualitativa, singular, pouco cuidadosa nas comparações, na contextualização, nas generalizações e não tem necessidade de provas para quem a transmite. A narração do passado transmitido por uma determinada pessoa será sempre a sua verdade. Por isso, a memória é uma construção sempre filtrada pelos conhecimentos posteriormente adquiridos, pela reflexão após o acontecimento ou outras experiências que se sobrepõem à primeira e modificam a recordação”[ix].

Para Jacques Le Goff, que também se debruçou sobre esta temática, a “memória colectiva” faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes ou dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção, visto não quererem perder suas suportes identitários.

Portanto, a memória é um elemento essencial, tanto para a identidade individual como para a colectiva, sendo a sua busca uma das actividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades e até mesmo um instrumento objectivo de poder.

Acresce que a noção de aprendizagem, para Jacques Le Goff, é importante na fase de aquisição da memória, porque desperta o interesse pelos diversos sistemas de educação que existiram em sociedades distintas e em diferentes épocas: as mnemotecnias.

 Acontece, porém, que diversas teorias que conduzem de algum modo à ideia de uma actualização mais ou menos mecânica de vestígios mnemónicos foram abandonadas, em favor de concepções mais complexas da actividade do cérebro e do sistema nervoso: “O processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios e os processos de releitura podem fazer intervir centros nervosos muito complexos e uma grande parte do córtex, existindo um certo número de centros cerebrais especializados na fixação do percurso mnésico”[x].

Desta contextualização resultam algumas das recentes concepções da memória individual, que põem a tónica nos aspectos de estruturação e nas actividades de auto-organização. Todavia, os fenómenos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos como nos psicológicos, mais não são que resultados de sistemas dinâmicos de organização e apenas existem na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui.

Ainda relativamente à noção de história, Jacques le Goff, alude que ela está dependente do passado em relação presente. No entanto avisa, por um lado, que o historiador deverá “distanciar-se do passado, uma distância reverente, necessária para o respeitar e evitar o anacronismo”[xi]. Por outro lado e ainda para este autor, “a história não é uma ciência como as outras – sem contar com aqueles que não a consideram uma ciência. Falar de história não é fácil, as dificuldades de linguagem introduzem-nos no próprio âmago das ambiguidades da história”[xii].

No fundo a história, não é senão uma parte da memória que se escreve no presente. Mas para existir como campo do saber, ela deve emancipar-se da memória, sem a esquecer nem colocá-la à distância. Um corte radical entre história e memória pode conduzir a consequências nefastas sobre o trabalho histórico ao transformar o historiador num simples “advogado da memória” ou fazê-lo perder de vista um contexto mais geral com o qual aquela mais se vincula. Daí que apreender a memória, passa por uma verificação objectiva, empírica, documental e factual, assinalando contudo as suas contradições e erros.

 


[i] Jacques Le Goff - “Memória”, in Enciclopédia Einaudi. Memória e História, vol. I, Lisboa, INCM, 1984.

[ii] Idem ibidem, pág. 11.

[iii] Elsa Peralta - “Abordagens teóricas ao estudo da memória social: uma resenha crítica” in Arquivos da Memória. Antropologia, Escala e Memória, nº 2 (Nova Série), 2007, pág. 5.

[iv] Idem ibidem, pág. 6.

[v] Sérgio Campos Matos - Historiografia e Memória Nacional. 1846-1898, Lisboa, Edições Colibri, 1998.

[vi] Idem ibidem, pág. 57.

[vii] Enzo Traverso - El Pasado. Instrucciones De Uso. Historia, Memoria, Politica, [s.l.], Marcial Pons, 2007, pág. 68.

[viii] Enzo Traverso - Op. Cit., pág. 68.

[ix] Idem ibidem, pág. 73.

[x] Jacques Le Goff - Op. cit, pág. 12.

[xi] Idem, ibidem, pág. 163.

[xii] Idem, ibidem, pág. 158.

 

(A Nação n.º286, Praia 21 a 27 de Fevereiro de 2013)