Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
VIOLÊNCIA VERSUS TOLERÂNCIA I

Se nos primórdios da Humanidade possivelmente existiria alguma harmonia, com a disputa e demarcação dos espaços, devido principalmente às necessidades de subsistência acrescida da dinâmica evolutiva, a sociedade tornou-se diversa e mais plural, propiciando multiculturalismos, consensos, cortes geracionais, conflitos sociais e choques político-militares.

Daí a história do ser humano não corresponder, essencialmente, a uma convivência com base na razão/compreensão, mas antes em desencontros, relações conflituosas e discordantes entre povos e culturas. Verifica-se que, ao longo dos tempos, os relacionamentos se pautaram significativamente mais pela agressividade, de mote genérico e adaptativo, em vez de uma racionalidade (característica exclusivamente humana). Com o progresso sociocultural seria suposto o ser humano munir-se de uma consciência ética, ou seja, de uma filosofia racionalizante e humanista.

Portanto, em lugar de um ente pensante e dito “valorativamente superior”, depara-se a todo o momento com atitudes reprováveis e pouco abonatórias praticadas por parte de indivíduos, grupos, povos e até estados. Por isso, clama-se no sentido de uma nova mentalidade/ consciencialização em prol da convivência necessariamente mais tolerante e respeitadora dos princípios humanistas fundamentais.

Em 1893 o dramaturgo italiano Pirandello publicou um ensaio sobre a “consciência moderna”, que ele apresentava, já então, em estado de “agitação contínua”, com “vozes discordantes” e contraditórias. De facto, nas sociedades modernas a violência preenche, como uma necessidade quase orgânica, o vazio existencial que essas mesmas produzem. A contemporaneidade tecnológica e consumista, que trai a experiência de um avanço ético e de prosperidade ao alcance de todos, deixa em seu lugar profunda frustração, um buraco negro emocional, do qual emergem no quotidiano cinzento reflexos de projectos insatisfeitos, ecos da indigência de referências.

Esta realidade, a que muitos chamam “crise de valores” numa tentativa de deslindar problemas sociais, ao mesmo tempo a escamoteia ao pretender transferir as responsabilidades para o “Estado Providência”, enquanto as situações tendem a persistir e atormentar o quotidiano das populações, por não verem resultados práticos nas decisões tomadas pelo poder político.

No contexto cabo-verdiano, a sociedade formou-se, num primeiro momento, com europeus e africanos, cujo inter-relacionamento (nada pacífico) deu origem ao mestiço, que aumentando rapidamente acabou por constituir a base do nosso povo.

Todavia, Cabo Verde tem sido um espaço social marcado por constrangimentos naturais (insularidade e condições adversas) e sociais (pobreza e desigualdade social), que os grupos dominantes aproveitaram para apropriar dos dispositivos reprodutivos do poder (na tentativa de os conservar), enquanto os mais desfavorecidos se viam confrontados com o sistema que lhes era imposto com escassa margem de manobra para a elaboração de estratégias que melhor se adequassem a uma melhoria socioeconómica.

Porém, a tradição cabo-verdiana de tolerância e hospitalidade teve a sua génese no espírito de entreajuda construído a partir de um povoamento assente em povos de etnias e culturas diferentes, que vindos de um espaço continental cheio de recursos, se viram acantonados numas ilhas em que se agruparam dificuldades de vária ordem, exigindo de todos um forte sentimento de colaboração (djunta-mom), visando a sua sobrevivência.

Apesar das características de tolerância/hospitalidade que ao longo dos tempos caracterizaram o cabo-verdiano, assiste-se presentemente a uma acentuada mudança de paradigma, que passou da branda infracção para a violência mais ousada.

Este tipo de transgressão antes quase que circunscrito aos bairros periféricos, convergiu para a urbe onde se agravou. Inicialmente, deveu-se em boa parte à utopia que a felicidade ancorada no poder económico está ao alcance de todos, levando principalmente os mais jovens à frustração de um quotidiano cinzento e à insatisfação incontrolável, que não vê a meios para atingir fins, assumindo formas de criminalidade a vários níveis, que vão do pequeno delito a assaltos, passando por roubos, ataques a pessoas e bens, ambiente a que não é estranha a violência na escola ou a baseada no género e a agressividade na condução automóvel.

No entanto, a violência vigente resulta de um agregado diversificado de factores que se interagem conjuntamente, entre as quais o facto de a desigualdade na redistribuição dos rendimentos ser muito vincada e os mais desfavorecidos sofrerem cada vez mais. Devido principalmente às parcas condições socioeconómicas, o choque da exclusão social e o desespero podem levar a complexidades comportamentais que encaminham para ilícitos.                                      

Acontece que a escalada da violência e o elevado índice de criminalidade produziram reflexos nos hábitos quotidianos, pois instalou-se a insegurança na população e com medo de saírem à rua a partir do escurecer, as pessoas trancam-se em casa como que em prisões, pois, para autodefesa, portas e janelas são reforçadas com grades resistentes.

(A Nação nº300, Praia, 30 de Maio a 6 de Junho de 2013)