Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
AS MIGRAÇÕES DE CABO-VERDIANOS

Dos vários motivos que impelem o homem de umas regiões para outras, citaremos como as mais importantes o espírito da aventura, os planos de conquista, a preocupação de fugir às perseguições políticas e religiosas, a necessidade de fugir à fome, a procura de terras mais generosas, o desemprego, o desejo de um melhor salário e conforto, aos quais se acrescentam a renovação dos horizontes do conhecimento.

No caso concreto dos cabo-verdianos, povo tradicionalmente migrante, poderemos esquematizar resumidamente as possíveis causas impulsionadoras dos diversos fluxos, do modo seguinte:

a)   – REPULSÃO – Problemas relacionados com frequentes e prolongadas crises de falta de chuvas, por vezes com consequências catastróficas:

    - Economia débil e de subsistência;

    - Elevado crescimento demográfico;

    - Desequilíbrios socioeconómicos.

        b) – ATRACÇÃO – Oferta de melhores condições de vida pelos países hospedeiros:

               - Necessidade de abundante mão-de-obra barata por parte dos países desenvolvidos;

              - Espírito de aventura dos ilhéus;

              - Perspectivas de melhoria das condições de vida.

        c) – COMUNICAÇÃO- O peso da tradição (emigração histórica)

              - Informações veiculadas pelos emigrantes de “torna-viagem”;

              - O estatuto económico que os emigrantes bem sucedidos são portadores no regresso á terra de origem;

             - Reportagens apresentadas pela comunicação social sobre os países mais desenvolvidos.

 

PRINCIPAIS CORRENTES MIGRATÓRIAS CABO-VERDIANAS

Desde o povoamento destas ilhas, a localização do arquipélago no cruzamento das rotas marítimas que ligavam a Europa, a África e as Américas fizeram dos seus portos um ponto de escala quase obrigatório para reabastecimento, reparação dos barcos e descanso das tripulações.

 Com a expansão do comércio de escravos, Cabo Verde transformou-se no local privilegiado para o loteamento daquela “mercadoria humana” antes de ser exportada para destinos vários, para além de cá se proceder ao seu baptismo e ladinização, aspecto que levou a duas classes de escravos: os ladinos mais caros e destinados a serviços “especializados” e os boçais para os trabalhos mais duros.

Acresce que se desenvolveu neste arquipélago uma indústria de panos tradicionais, que na época eram utilizados como moeda de troca para a aquisição dos escravos na costa africana defronte, levando a que os negreiros aportassem à Ribeira Grande para obtenção dos panos que necessitavam para o seu rendoso negócio.

Esta série de contactos com povos e culturas diferentes aumentou nos cabo-verdianos o desejo de conhecer novas terras, o que consequentemente deu origem ao início da emigração cabo-verdiana.

Todavia, os rumos da emigração cabo-verdiana têm-se orientado para diferentes destinos conforme a conjuntura interna do arquipélago ou das potencialidades de trabalho no estrangeiro, fazendo com que ao longo dos tempos houvesse sempre uma corrente particular que, ganhando maior expressão, se sobrepunha às restantes.

Deste modo, desde os finais do Século XVIII sucederam-se no tempo importantes fluxos migratórios para as Américas (EUA a par de números menos significativos para o Brasil e Argentina), para África (Senegal, S. Tomé e Angola) e ainda para a Europa (onde a mão-de-obra cabo-verdiana foi utilizada no esforço para a sua reconstrução na década de cinquenta do século XX).

1 - AMÉRICAS

1.1 - ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

Apesar de os cabo-verdianos terem começado as suas migrações, praticamente, desde dos inícios do povoamento das ilhas, os fluxos de saídas mais representativas começaram com as actividades relacionadas com a pesca da baleia, sector de grande importância económica na altura. O gradual interesse pelo “óleo da baleia” fez expandir a sua captura por várias partes do mundo, incluindo os mares do arquipélago, onde aportavam os “baleeiros” americanos á procura daqueles cetáceos nas suas rotas migratórias.

 Assim, face ao acanhado espaço dos barcos e para complementar a actividade dos tripulantes, começaram a preparar o referido óleo em terra com a ajuda de pescadores locais.

Muitos destes foram posteriormente recrutados pelos capitães e, terminado o périplo pelos mares, acabaram por se instalar na América, normalmente trabalhando nas actividades portuárias, área em que se encontravam mais ambientados, dando origem a uma corrente migratória com a reunião familiar numa saída que, com  altos e baixos se manteve até aos nossos dias.

1.2 - BRASIL

Face ás dificuldades impostas para a entrada nos EUA, os cabo-verdianos rumaram ao Brasil, onde não tinham a barreira da língua.

Porém, esta migração não teve o peso dos EUA, principalmente por não ser tão atractiva do ponto de vista económico.

Mesmo assim, a corrente continuou por bastante tempo, sendo por isso significativa a presença de cabo-verdianos no Brasil.

1.3 - ARGENTINA

Nos finais do século XIX começaram a chegar os primeiros cabo-verdianos ao Rio de La Plata, mas depois se espalharam por Montevideu, Buenos Aires e Ensenada de Barragan, principalmente.

Aportavam à Argentina como tripulantes de barcos da marinha mercante a partir do Porto Grande do Mindelo, que na altura era a mais importante escala marítima no Atlântico médio.

Como muitos daqueles marítimos se instalaram em terra, ainda existe uma interessante comunidade cabo-verdiana naquele país da América do Sul.  

 

 

2 - ÀFRICA

2.1 - SENEGAL

Com a quebra da emigração para as Américas, aumentou o fluxo migratório já existente para o Senegal, principalmente para fugir á fome quando se fazia sentir em Cabo Verde.

Contudo teve maior significado nos anos 50 do século passado, pois, devido á proximidade que facilitou os contactos entre os dois países, empreiteiros senegaleses decidiram recrutar em Cabo Verde profissionais no campo de pedreiros, marceneiros, pintores e outros artífices, que necessitavam para as obras de expansão da cidade de Dakar.

Ainda hoje se mantêm essas relações, agora ampliadas com a CEDEAO, o que proporcionou uma corrente no sentido inverso, tornando Cabo Verde, que antes era um país de emigração, também num país de imigração.

2.2 - S. TOMÉ E PRÍNCIPE

A exploração de grandes propriedades agrícolas nas ilhas de S. Tomé e Príncipe exigia uma razoável quantidade mão-de-obra, que não era completamente coberta pelos naturais daquele arquipélago.

Com as faltas de chuvas regulares nas nossas ilhas, cuja economia tradicional se baseava na agricultura, os responsáveis pelos destinos de Cabo Verde, em colaboração com os proprietários daquelas “roças”, viram nesta situação uma válvula de escape para os famintos, ao mesmo tempo que resolviam o problema de escassez de braços naquele arquipélago ao enviarem para lá cabo-verdianos sob a capa de pseudo-contratos, cujas clausulas nunca foram cumpridas.

Essa deslocação de “contratados” engrossou bastante, mas sempre com quase nulos proveitos para os cabo-verdianos que eram explorados por incumprimento da legislação, o que servia para mascarar internacionalmente a realidade, na medida em que os trabalhadores se encontravam numa situação quase escravocrata.

Acontece que com a descolonização e a partida dos proprietários das “roças”, os cabo-verdianos foram abandonados à sua sorte e os que ainda lá se encontravam passaram a uma vida de verdadeira miséria, drama que o Governo de Cabo Verde procura minorar concedendo-lhes uma pequena pensão de sobrevivência, porque se mostra difícil a sua possível reintegração na actual sociedade cabo-verdiana.

2.3 - ANGOLA

A presença de migrantes cabo-verdianos em Angola desenvolveu-se caracterizada por condicionalismos diversos e que se concretizavam de acordo com os interesses da administração colonial, numa espécie de “emigração dirigida” em que os cabo-verdianos começaram a chegar em Angola para trabalharem nas grandes fazendas agro-pecuárias, através de contratos celebrados com o apoio das autoridades administrativas locais.

Porém, as condições de trabalho eram bem diferentes daquelas a que os cabo-verdianos estavam habituados, o que levou à desistências de muitos, que passaram a exercer funções noutras actividades.  

Contudo, como os cabo-verdianos se descolaram para aquele país com as mais diversas motivações, a comunidade cabo-verdiana em Angola é actualmente bastante expressiva.

3 - EUROPA

A inflexão rumo à Europa constituiu uma grande viragem nos destinos da emigração cabo-verdiana, facilitada em parte pela conjuntura internacional, porque os países europeus se encontravam em franco desenvolvimento, refazendo-se dos efeitos da II Grande Guerra.

Iniciou-se nos finais dos anos cinquenta do século passado e como havia uma enorme falta de mão-de-obra nos referidos países, os cabo-verdianos foram muito bem recebidos o que provocou um verdadeiro “êxodo”, primeiro para a Holanda e Bélgica, para de seguida se estender a quase toda a Europa Ocidental e constituindo o maior fluxo de saídas de emigrantes cabo-verdianos.

3.1 - PORTUGAL

Como país detentor da colónia Cabo Verde, Portugal funcionou primeiramente apenas como uma “placa giratória” que distribuía os potenciais emigrantes cabo-verdianos para os diversos países de acolhimento.

Mais tarde, com a forte emigração de portugueses para a França e Alemanha principalmente, e a saídas de um significativo número de militares para as três frentes da guerra colonial em África, verificou-se um vazio de mão-de-obra em Portugal, levando a que por iniciativa governamental socorressem dos cabo-verdianos para preencher a lacuna que se fazia sentir numa altura em que, nomeadamente, tinham iniciado as obras do porto de Sines e a construção de unidades hoteleiras no Algarve para corresponder á expansão da procura turística.

Portugal tornou-se, assim, um importante destino de trabalhadores cabo-verdianos que se viam a braços com a falta de emprego no arquipélago, pois atravessava mais uma das suas crises de falta de chuvas.

Se numa primeira fase as deslocações eram facilitadas pelas razões já aludidas, com a recessão económica e o facto de Cabo Verde se ter tornado um país independente, levou a que os cabo-verdianos passassem a ser estrangeiros e o seu ingresso em Portugal se mostrou muito mais difícil.

Todavia, os potenciais emigrantes lançaram mão de toda a espécie de estratagemas para entrarem naquele país, nomeadamente utilizando “vistos de turistas”, para depois se deixarem ficar a trabalhar como clandestinos, enfrentando assim toda a sorte de consequências que tal situação acarreta, como a exploração por pessoas sem escrúpulos, falta de assistência médico-medicamentosa, inexistência de serviços de apoio social, nem descontos para reformas, etc.

3.2 - OUTROS PAÍSES EUROPEUS

O sonho dos cabo-verdianos não era ficar em Portugal, mas sim viajar para os países com melhores salários e regalias sociais. Por isso, após a necessária aquisição dos passaportes, viajaram para a Holanda, Bélgica Alemanha, Luxemburgo e Itália, em fluxos que consoante os respectivos mercados de trabalho se tornaram países de acolhimento.

Numa primeira fase a maioria dos cabo-verdianos eram recrutados para trabalhar na marinha mercante, mas quando surgiu a possibilidade de se fixarem em terra começou o reagrupamento familiar, engrossando a corrente migratória.

Estes trabalhadores foram bem recebidos na Europa porque escasseavam braços, sendo por isso integrados nos sistemas de apoio social, com salários compatíveis, direito a férias e descontos para a reforma. Sem quaisquer dúvidas foi a corrente migratória que mais consequências positivas carreou para Cabo Verde.

4 - CONSEQÊNCIAS NA SOCIEDADE CABO-VERDIANA

Sendo a adaptação às novas culturas sempre difícil, na dialéctica entre a forte ligação às próprias raízes culturais e a da sociedade hospedeira, o emigrante cabo-verdiano começa a comportar-se com um indivíduo “dividido”, face á necessidade de não se alhear do ambiente circundante, do qual absorveram traços culturais.

Daí que estas deslocações são fenómenos com repercussão na vida das populações, pelos seus impactos a nível económico, social e cultural.

Sem nos determos numa análise detalhada das influências que os emigrantes de “torna-viagem” introduzem no processo dinâmico sociocultural cabo-verdiano, diremos que é importante o seu impacto na economia local e na melhoria do conforto e bem-estar dos seus familiares, não só através das remessas cujo volume é registado nas estatísticas oficiais, mas acrescido dos quantitativos bastante significativos que chegam pelas diversas vias informais.

Do mesmo modo, têm dinamizado as aculturações no arquipélago, facilitadas pela tendência natural que os cabo-verdianos possuem para adaptar e integrar elementos de outras culturas, principalmente por parte das camadas mais jovens.

Assim, acrescido ao facto de contribuírem para diluir algumas das diferenças no contexto rural/urbano e esbater certos estatutos do ponto de vista económico, muitos cabo-verdianos consideram um sinal de ascensão social imitar o “torna-viagem”. Por isso, verificaram-se transformações nos hábitos, comportamentos, procedimentos, costumes e valores tradicionais.

As modificações materializaram-se, também, através da aquisição de símbolos de prestígio como nos modelos das habitações, decoração dos seus interiores com mobiliário de estilo moderno, carros, compra de electrodomésticos (mesmo em locais onde não havia electricidade).

Registaram-se mudanças na ocupação dos tempos livres, lazer e hábitos de sociabilidade, traduzidas (p.e.) na alteração do costume de os homens que antes nos momentos de ócio iam para as tabernas conversar e bebericar entre jogos de cartas e de ouri, passarem a ver futebol e novelas na televisão; com o aparecimento do gira-discos e do gravador quase que desaparecerem os bailes ao som de orquestras de “pau e corda”. Acompanhando o progresso, apareceram as bandas com instrumentos electrónicos e surgiram novas músicas e ritmos que contagiaram principalmente a juventude.

Saliente-se, também que as modificações no campo da alimentação não se deveram apenas ao desequilíbrio ecológico e consequente diminuição da produção agrícola local, mas principalmente à emigração ao possibilitar um melhor poder de compra e pelos novos hábitos introduzidos junto dos familiares e amigos, como será o caso do uso das saladas, anteriormente arredada da alimentação tradicional.

Acresce que o aumento produtos importados permitiu uma maior variedade de alimentos disponíveis e, portanto a diversificação das dietas, em que o milho foi substituído pelo arroz, a banha de porco pelos óleos vegetais, a “manteiga da terra” pelas margarinas e generalizou-se a utilização dos alimentos enlatados.

Registe-se, ainda, que um dos novos hábitos alimentares resultou da importante emigração do sexo feminino para a Itália e que nos seus contactos com a terra natal introduziram em Cabo Verde as massas na alimentação local.

Outro aspecto digno de referência prende-se com o facto de as culturas tradicionais em contacto com outras (neste caso as que os torna-viagens são portadores) sofrem aculturações. Daí que valores como a honra e a vergonha, interiorizados por uma formação cristã, tenham vindo a ser “desvalorizados”, a “ancestralidade” e o respeito pelos anciãos trocados, em nome de uma falsa modernidade, pelo enaltecimento da conhecida irreverência do jovens, a tradicional solidariedade e cooperação (djunta-mom, dar as mãos) substituídos pelo individualismo, a competição e a ostentação dos indicadores de riqueza.

5 - DIVULGAÇÃO DA CULTURA CABO-VERDIANA

Como a identidade cultural do cabo-verdiano é muito forte e a sua cultura acompanha-o para qualquer parte onde estiver, ela tem servido para se defender contra as agressivas influências das culturas que o envolve nos países de acolhimento.

Desta forma, ultrapassada a crise de adaptação, a cultura cabo-verdiana começa a ser aceite pelas sociedades hospedeiras, constatando-se que pouco a pouco expandiu para além das suas comunidades, passando às vizinhanças e grupos de convívio, até se extrapolar para o público em geral, nomeadamente através das muitas associações espalhadas pelos vários países e continentes.

Citando por exemplo os E.U.A., para onde rumou a primeira corrente migratória e na qual os cabo-verdianos tiveram que enfrentar as barreiras da cor, da língua e a falta de formação profissional, paulatinamente esta comunidade se impôs naquele grande país, ao ponto de a língua cabo-verdiana estar a ser leccionada há mais de uma década em várias universidades americanas.

Poderemos também referir o caso de Portugal, onde a literatura cabo-verdiana é matéria de estudo tanto no ensino secundário como no ensino superior, para além de esta cultura constituir tema para monografias, dissertações de mestrados, teses de doutoramentos e, ainda, assunto para congressos e colóquios internacionais.

Naquele país, a música cabo-verdiana integra programas de televisão e da rádio com muito boa audiência, sendo também utilizada para animação das discotecas, que por isso passaram a ser as mais concorridas por pessoas de todos os escalões etários.

Outro aspecto importante é o facto de actualmente a gastronomia cabo-verdiana passar a constar da ementa de muitos restaurantes portugueses, principalmente na região da grande Lisboa.

 Voltando á música, é digno de relevo o papel que a mesma vem desempenhando pela mão de cantores cabo-verdianos, ao levarem o nome de Cabo Verde aos mais diferentes povos e culturas, não só na Europa, Américas e África, mas à Índia ou ao longínquo Japão, pelas vozes da consagrada Cesária Évora, da Lura e da Maira, entre muitos outros nomes artistas emigrantes.

Diríamos, em resumo que, face às potencialidades da cultura cabo-verdiana, da mesma maneira como são diferentes as influências que os “torna-viagem” são portadores, consoante os respectivos países de acolhimento, também são diversas as possibilidades de divulgação da sua cultura no estrangeiro.

(Jornadas de Reflexão sobre o “Dossier Statistico Immigrazione”, realizado pela Caritas/Migrantes - Itália, na Praia, 22 a 25-02-2010)