Textos
Alguns trabalhos abordando temas diversos, recentemente publicados em jornais e revistas, com suas referências bibliográficas.
SINCRETISMO RELIGIOSO

O termo sincretismo teve origem no conceito “Cultura de Sincretismo”, união dos Cretenses. Supõe-se que foi utilizado pela primeira vez por Plutarco (1), querendo designar a momentânea união dos Cretenses contra o inimigo comum, porque habitualmente estavam separados. O termo voltou a funcionar com o sentido de “coligação” no Séc. VXI, entre humanistas e reformistas (2). Porém, no séc. XVIII, perdida a verdadeira origem do vocábulo, pensou-se que derivava de “sim+keranummi” (misturar) e passou então a significar mescla de doutrina de diversas proveniências (católicas, luterana e calvinista). A partir dai, o conceito alargou-se a toda forma de mistura (por justaposição, sobreposição ou fusão) de doutrinas, de ritos, de imagens ou de símbolos aplicáveis a vários campos, e a noção fixou aproximando-se de eclectismo.


O sincretismo religioso consiste, portanto, numa fusão de concepções religiosas diferentes, com base na influência exercida por uma religião nas práticas de uma outra, resultando na fusão de doutrinas de diversas origens na esfera de crenças religiosas que se interpenetram. Segundo Bastide, “o sincretismo nunca é simplesmente uma equivalência de termos de justaposição mecânica de traços culturais oriundos de duas civilizações diferentes, mas, ao contrário, é sempre elaborado de um sistema” (3).


No que concerne à formação do sincretismo em Cabo Verde, acompanhou a construção da nossa cultura, numa impregnação, que se processou lenta e gradualmente, de aspectos das cresças afro-negras nas práticas e rituais da religião católica, embora seja difícil determinar, de forma absoluta, através das actuais sobrevivências a verdadeira procedência dos elementos presentes nas manifestações sincréticas cabo-verdianas.


É sabido que, com o povoamento de Cabo Verde, ocorreu no arquipélago um processo de miscigenação resultante do encontro das várias etnias neste espaço, até então desabitado, na medida em que na ocupação humana intervieram diferentes grupos de europeus e de africanos que se entrecruzaram (nem sempre harmonicamente).


A cultura Cabo-verdiana resultou, pois, da aproximação entre elementos de origem europeia e africana, adaptados a este espaço geográfico com características muito próprias - ilhas situadas no meio Atlântico, cujo isolamento contribuiu para um intenso relacionamento entre pessoas de civilizações diferentes, daí resultando esse “mundo que o mulato criou”.


Embora “cada ilha te(m)nha uma identidade bem reconhecível, seja do ponto de vista geomorfológico, bioclimático, agronómico, seja histórico-cultural. No entanto, além da especificidade insular, o arquipélago apresenta uma unidade cultural que é, inter alia, a sua crioulidade, o seu sincretismo, presente em todas as expressões culturais, sejam literárias, sejam festivas, linguísticas, musicais, etc”(4).


Saliente-se que a condição de escravo fazia com que o negro não pudesse transmitir a sua cultura em toda a plenitude, mas sim desvirtuada pela escravidão, situação que lhe coarctava os direitos humanos. Para além de ser arrancado do seu ambiente, viu-se obrigado a assumir valores alheios impostos sem respeito pela respectiva etnia, num contexto passível de perderem a identidade originária.


O facto de pertencerem a uma civilização diferente fez com que os europeus procurassem “reeducá-los” com vista à assimilação da sua cultura. Para tal contribuíram a catequização, o ensino e a difusão da cultura europeia, trilogia cristocêntrica confiada por Portugal às ordens religiosas, que também procuravam conquistar as populações para o seio da Igreja Católica.


Todavia, os escravos fujões (e com a abolição da escravatura também os libertos) desempenharam um papel importante no que tange à presença da cultura africana, antes praticada às escondidas, visto que os seus senhores que os impediam de vivenciar aspectos culturais que consideravam “selvagens”. Todavia, o tempo se encarregou de homogeneizar as práticas e rituais que deram corpo às actuais manifestações tradicionais cabo-verdianos, nas quais religiões e crenças imbricam o sagrado e o profano.


Para Caillois, “o sagrado aparece assim como uma categoria da sensibilidade, é a categoria sobre a qual assenta a atitude religiosa, aquela que lhe dá o seu carácter especifico, aquela que impõe ao fiel um sentimento de respeito particular, que presume a sua fé contra o espírito de exame, a subtrair à discussão, a coloca fora e para além da razão”(5).


Quanto ao profano (do latim profanu), simboliza alguém que não pertence à classe eclesiástica ou que é estranha às coisas da religião, aquele que não cabe em determinada seita, classe, associação. Pode-se, também, definir o profano como um adjectivo, quanto é encarado de modo neutral à realidade do sagrado. No entanto, profano se transforma em sagrado por meio de purificação ou consagração e vice-versa o sagrado pode ser profanado.


Agregando aspectos sincréticos, segundo Moisés Espírito-Santo, em Portugal as festas de romaria tiveram início com as congregações cujo propósito era proteger os mais necessitados. Nestas festividades, a parte religiosa era celebrada com uma missa para afastar os maus espíritos, com destaque para a procissão. Ainda de acordo com o mesmo autor, trata-se de um rito deambulatório e circular que sugere a tomada de posse do espaço e, simultaneamente, um novo nascimento de todo o grupo. Essas deambulações podiam ser executadas de joelhos, de pés descalços, cobertos de uma túnica branca e transparente chamada mortalha, ou com uma pedra à cabeça, com a finalidade de “pagar uma promessa” (6).


As festas de romaria foram introduzidas em Cabo Verde pelos portugueses e acontecem ao longo do ano em praticamente todas as freguesia do país, homenageando os respectivos padroeiros. Diferenciam consoante as características de cada religião, mas reflectem no fundamental aspecto comuns, visto todas integrarem cerimónias religiosas complementadas por aspectos lúdicos com grande riqueza simbólica. Por isso, registam-se sincretismo nos vários momentos das festividades, uma vez que ao programa ligado ao sagrado (missa, procissão e sermão), se seguem animados diversões e folias (música, dança e comidas bem “regadas” com rogue e cerveja principalmente).


Como o religioso tem um espaço e um tempo que lhe é dedicado, tais celebrações impõem a suspensão dos trabalhos agrícolas, também com o objectivo de facilitar a sociabilidade das comunidades aldeãs. Nessa altura, muitos emigrantes vêm de férias e peregrinos cumprem devotamente promessas junto aos alteres, prestam homenagem aos santos devotos, fazem novos pedidos, dirigem súplicas, orações e louvores pelas benesses concedidas.


O sincretismo cabo-verdiano está bem patente nas festas juninas, nas festas das bandeiras, na tabanca ou nas festas de romaria, nas quais o religioso e o profano se interpenetram, para além na área do lúdico proporcionarem reencontros, convívios e forte confraternidade nos mais diversos aspectos, dando lugar a uma autêntica socialização cultural.


Por conseguinte, a interpenetração em Cabo Verde de diversos usos e costumes conduziu às manifestações sincréticas resultantes da conjugação de valores e sentimentos provenientes de reminiscências africanas em convivência com a cultura europeia.


Apesar de actualmente festejarem essas tradições numa visão da modernidade, as comunidades conciliam as vertentes das celebrações de forma a contextualizarem as características do nosso povo, pelo que constituem um elemento representativo da Identidade Cultural Cabo-verdiana.

(A Nação nº 326, de 28 de Novembro a 04 de Dezembro de 2013)

Notas
1 - PLUTARCO - Moralia, III, p. 271.
2 - ERASMO - Carta de Melanchton, in Corpus, Ref. I, 78 c.
3 - BASTIDE, R.- Estudos Afro-brasileiros, 1ª ed., São Paulo, 1883.
4 - SEMEDO, J. M. e TURANO, M.R. – Cabo Verde: O Ritual das Festividades da ilha do Fogo, Praia, IIPC, 2007, p. 18.
5 - CAILLOIS, Roger – O Homem e o Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 20.
6 - ESPIRITO SANTO, Moisés - A Religião Popular Portuguesa, Lisboa, Edições 70, 1999,p. 138